FOLHA DE SÃO PAULO
Domingo, 27 de fevereiro de 2011, p. C1
Encarte “Codiano”
Manchete
Metade das escolas tem ensino religioso
São 98 mil colégios, públicos ou privados, oferecendo a disciplina, segundo censo da educação básica do MEC.
Sem diretriz nacional sobre conteúdo, Estados e municípios adotam formatos diversos; lei veta só propaganda
ANGELA PINHO
DE BRASÍLIA
"O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta a professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!" A cena, numa escola pública de Samambaia, cidade-satélite de Brasília, precede aula sobre a criação do universo por Deus em sete dias. O colégio é um dos 98 mil do país (entre públicos e particulares) que ensinam religião.
O número começou a ser levantado em 2009, no censo da educação básica feito pelo Inep (instituto ligado ao MEC). Ao todo, metade das escolas do país tem ensino religioso na grade curricular.
O fundamento está na Constituição, que determina que a disciplina deve ser oferecida no horário normal da rede pública, embora seja opcional aos estudantes. Escolas particulares não precisam oferecê-la, mas, se assim decidirem, podem obrigar os alunos a assistirem às aulas.
Não há, porém, uma diretriz nacional sobre o conteúdo -a lei proíbe só que seja feita propaganda religiosa e queixas devem ser feitas aos conselhos de educação. Assim, Estados e municípios adotam formatos diversos. Uns põem religiosos para dar as aulas; outros, professores formados em história, pedagogia e ciências sociais. É o caso do DF, onde a orientação é que não haja privilégio a um credo -embora a aula em Samambaia possa ser considerada controversa.
DISCUSSÕES
A conveniência de se oferecer ou não o ensino religioso é, sim, algo controverso. Uma das maiores discussões ocorreu em 1997, quando, meses antes da visita do papa João Paulo 2º, o governo federal retirou da lei dispositivo que proibia o Estado de gastar dinheiro público com o ensino religioso
Em 2008, nova polêmica surgiu quando o Brasil assinou com o Vaticano acordo que previa que "o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental".
A controvérsia foi a menção explícita ao catolicismo, vista por alguns como privilégio a uma única religião.
SUPREMO
Para Roseli Fischmann, professora da USP, a disciplina fere o caráter laico do Estado. "Precisaríamos ter a coragem de aprovar emenda que a retirasse da Constituição", afirma.
Presidente do Fonaper (Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso), Elcio Cecchetti defende a disciplina sob o argumento de que as crenças ou a ausência delas são "dados antropológicos e socioculturais" que devem ser ensinados, mas sem privilégio a uma religião.
A polêmica chegou à Justiça. Desde o ano passado, o STF (Supremo Tribunal Federal) analisa ação em que o Ministério Público Federal pede que determine que o ensino religioso só possa ser de natureza não confessional e proibindo que religiosos sejam professores.
Matéria 02:
Casal de ateus faz acordo e escola libera filhos de aula
No horário do ensino religioso, garotos do Paraná frequentam a biblioteca Diretor de colégio diz que a "diversidade das crianças é respeitada" nas aulas, que não doutrinam alunos.
DIMITRI DO VALLE
DE CURITIBA
Os pais de dois alunos de Pranchita, no interior do Paraná, fizeram um acordo com a direção da escola pública onde os filhos estudam para que eles deixassem de frequentar as aulas de religião.
A professora Eliane Lambert Junkes, 26, e o marido, o caminhoneiro Alberi Junkes, 40, são ateus e defendem o direito de os gêmeos, de sete anos de idade, não serem "doutrinados" sobre a existência de Deus.
A mãe de Marco Antônio e João Antônio não admite que as aulas de ensino religioso comecem com uma oração nem que Deus seja tratado como uma entidade real e superior, que zela pela humanidade e tem poderes para julgar as ações dos homens.
O acordo foi feito no ano passado -as crianças foram às aulas por quase três anos- e permitiu que, nesse horário, os meninos frequentem a biblioteca. Eliane diz que a decisão foi amigável.
"Não quero que eles sejam doutrinados a crer. Ninguém precisa ser bom na vida porque tem alguém superior olhando. As pessoas devem ser boas porque isso é correto", afirma a professora.
Eliane acredita que os filhos, quando amadurecerem, poderão adquirir conhecimento suficiente para decidir qual papel a religião terá em suas vidas. "Quando eles crescerem, teremos condições de conversar melhor", diz.
HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
A mãe dos garotos afirma que, se as aulas tivessem outro tipo de abordagem, como a história das religiões, não se oporia ao aprendizado.
"A história das religiões é importante para contar o processo de formação do homem. Jamais vou privar meus filhos do conhecimento, mas não é o que acontecia na escola", afirma.
Procurado pela Folha, o diretor da Escola Municipal Márcia Canzi Malacarne, Everaldo Canzi, declarou que não daria entrevista por telefone porque considera o tema "complexo e amplo".
Ele negou, no entanto, que as aulas tenham o objetivo de "doutrinar" os alunos a crer e disse que a "diversidade das crianças é respeitada".
Matéria 03:
Rede pública do Rio oferece aulas opcionais de sete religiões
DO RIO
DE SÃO PAULO
Uma lei estadual no Rio define que a oferta de ensino religioso é obrigatória nas escolas, mas a matrícula na disciplina é opcional.
Cabe aos alunos de 16 anos ou aos responsáveis daqueles abaixo dessa idade definir qual religião estudarão -há sete disponíveis, diz o governo: católico, evangélico, judaico, mórmon, espírita, umbandista e messiânico.
Segundo especialistas, porém, a oferta de professores nas escolas públicas é reduzida e a legislação, desvirtuada. O ensino religioso no Estado é confessional.
Os professores passam por cursos definidos por instituições religiosas credenciadas pelo Estado. Na prática, porém, 90% dos professores professam religiões cristãs, dizem pesquisadores.
A Secretaria de Educação afirmou que a distribuição de professores é proporcional ao credo dos alunos. Segundo o órgão, o ensino religioso no Estado "é confessional e plural, respeitando a diversidade cultural e religiosa".
Na capital, não há ensino religioso. O Conselho Municipal de Educação decidiu esperar a manifestação do Supremo sobre o tema para decidir como ele deve tratado. SÃO PAULO
Na rede estadual de São Paulo, não há disciplinas específicas de ensino religioso. Segundo a Secretaria da Educação, o conteúdo é distribuído em outras matérias, como sociologia e filosofia.
Matéria 04:
ANÁLISE: Omissão acabou produzindo um mapa caótico das religiões HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
Tecnicamente, o Brasil é um Estado laico. Não há religião oficial e o artigo 19 da Constituição proíbe expressamente o poder público de estabelecer cultos religiosos, subvencioná-los ou manter com eles relações de dependência ou aliança.
A própria Carta, entretanto, invoca em seu preâmbulo a "proteção de Deus" e, no artigo 210, prevê o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.
Embora doutrinadores gostem de dizer que não há contradição entre esses dispositivos, é forçoso reconhecer que colocá-los lado a lado gera pelo menos um ruído. Fica a sensação de que o legislador quis estabelecer a quadratura do círculo por meio de decreto.
Ao contrário de outros estrépitos constitucionais, que conseguem passar relativamente despercebidos, esse está produzindo uma série de consequências.
Por considerar que a religião não é assunto de regulação estatal, o CNE (Conselho Nacional de Educação) optou por não fixar parâmetros curriculares nacionais para o ensino religioso. A decisão é institucionalmente correta, mas gerou um deus nos acuda, onde cada Estado definiu ao sabor da conjuntura política local como a matéria seria ministrada.
Os problemas jurídicos são tantos, que o Ministério Público Federal está movendo uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade) contra o ensino religioso nas escolas públicas.
Na Adin, protocolada em agosto, a subprocuradora-geral Deborah Duprat pede que o Supremo vede os sistemas de caráter confessional e determine que a abordagem histórico-antropológica seja adotada em nível nacional. [Fonte: Folha de São Paulo]